terça-feira, 24 de junho de 2014

Desvendando "Boys for Pele" (Parte II)

É com muita alegria que postamos aqui a segunda e última parte do texto "Desvendando Boys For Pele", escrito por Ailton Palaria. O retorno em comentários e visualizações no blog foi notável, e só temos a agradecer por tudo isso. Devo um agradecimento também ao próprio Ailton, que compartilhou de forma tão singular suas ideias acerca do disco... Muito obrigado, de coração.
Nessa metade final, vemos Tori tornar-se um pouco menos emocional e mais racional na forma como aborda seu rompimento, alcançando uma cura para as feridas que ainda estavam abertas em seu espírito. Se primeiro ela tenta conter sua raiva em Little Amsterdam, a "personagem" da história desenvolve empatia pelo seu então desafeto, e percebe finalmente que o que buscava lá fora deveria ser encontrado dentro de si, na união final de suas partes separadas. Enfim, que continue a jornada!

Nota: para ler a parte I, fica aqui o link




DESVENDANDO "BOYS FOR PELE"
Parte II

Por Ailton Palaria


Depois de morrer emocionalmente e chegar ao fundo do poço em Way Down, Tori precisa reagir e dessa vez não somente com seu mundo interior e com suas emoções, mas com a consciência, com a razão. É trabalhando com as dicotomias: Inconsciente X Consciente e Emoção X Razão que ela poderá seguir em frente rumo ao perdão e à paz interior.
A jornada dessa guerra agora toma um rumo prático. É hora de agir...

Em Little Amsterdam Tori dá voz à sua raiva consciente. Ela se encontra naquele momento em que a impulsividade sussurra no seu ouvido: “Sim, faça isso! Vá lá, deixe a razão de lado, faça o que tenha de ser feito: mate-o, elimine este homem da sua vida. Ele é a besta do seu Apocalipse!”

Don’t take me back to the Range, back to the Range
I’m just comin’ out of the cell in my brain
Don’t take me back to the Range, back to the Range
Cause girl you’ve got to know these days
Which side you’re on

“Pois você está lidando com o inconsciente, bem como com a consciência a todo o momento. A grande ideia que começou a vir pra mim em Amsterdam foi... Quer dizer, deixe lhe dizer, eram apenas visitas de Sylvia Plath, enquanto cantava 'Don't take me back to the range.'... O conflito por saber que eu poderia matá-lo, por saber que ele deveria ser morto, por saber que eu ficaria bem com tudo isso, mas, mãe, aquela bala não era minha. E estou pagando por isso. Sou fascinada por fronteiras". [Really Deep Thoughts - #10, Summer 1996]

Mas a razão acaba falando mais alto: “Sei que não existe nada pior do que a sensação de perder aquilo que você achou que teria para a vida inteira. Lidar com perdas, a maior deficiência do Ocidente. Mas dance conforme a Dança da Vida, tenha jogo de cintura, pois você o perdeu, e caso consiga se transformar em uma grande dançarina, talvez ganhe algo com tudo isso”.

Say goodbye now my baby, gotta go
Say goodbye my baby to the Old World
(…)
Talula, Talula
I don’t want to lose him
He must be worth losing
If it is worth something

"A perda de Eric na minha vida foi... parecia que metade de mim tinha saído pela porta. E Talula veio como uma canção de ninar. Minha pequena dança que faria quando as coisas ficassem muito tristes. Pois comecei a pensar, 'Deus, eu tenho esses sentimentos, isso quer dizer...'. Nós compartilhamos tantos momentos que valorizo​​, realmente dei valor a isso, então, que presente poder sentir essa perda, que não estou tão entorpecida, que não me matei tanto assim, e uma vez que consegui sentir a perda, então comecei a me sentir livre. Eu quero dançar e dizer, 'Sim, quero estar com Talula.' Quero ser capaz de dançar com as pessoas que entram e saem de sua vida. Quero aprender a dançar com as dádivas quando elas vêm e quando elas precisam tomar um caminho diferente." [B-Side – May/June 1996]

A poeira começa a assentar, a razão toma as rédeas novamente e certos questionamentos começam a surgir na mente de Tori: “Quantos homens também já sofreram por mim? Na verdade, quantos homens eu já fiz sofrer? Quantos homens perderam o sentido de viver, porque a mulher amada se foi e só lhes sobraram como lembranças suas belas fitas de cabelo vermelhas?”. Num relacionamento amoroso não há vilões, heróis, culpados ou inocentes. Os dois corações envolvidos respondem por uma parcela nessa relação. Eis aí o beijo da compaixão...

Not the Red Baron I’m sure
Not Charlie’s wonderful dog
Not anyone I really know
Just another pilot down
Maybe I’ll just sing him a last little sound
Many there know some girls with red ribbons
The prettiest
Red

Ribbons


"Então, naturalmente, caminhamos para outro momento no álbum. Not The Red Baron é o momento de compaixão por todos os homens no álbum. É onde consigo ver seus aviões caindo, percebi que eles também tinham um ponto de vista. E se seus aviões iriam cair, comecei a sentir compaixão pelo ponto de vista deles." [B-Side – May/June 1996]

A situação começa a se transformar. Os sentimentos ainda estão feridos, a guerra ainda não terminou, mas certas necessidades não deixam de existir. Até mesmo durante o embate mais terrível, o corpo precisa suprir suas necessidades. Tori percebe que, de fato, a carne é fraca e às vezes é preciso deixar alguém (Mark Hawley, talvez), quem sabe até um soldado da máscula tropa inimiga, mergulhar nas águas do território feminino:

He’s my favorite
And they don’t understand
He’s got palm oil fans
Yes, he’s down and there
And everywhere
He’s got an A to Z
An underwater city
Where he swims
And swims

"Ao passo que o álbum continua - e continua, e continua, e continua [Risos] - a vulnerabilidade começa a chegar. Então você começa a dormir com um dos tenentes do lado inimigo, pois você acabou caindo num vilarejo rural e você acaba se esquecendo que estão em lados opostos. [...] Essa música, Agent Orange, é o momento de uma hora de cabaré, onde você toma duas doses de Amarettos com gelo, e existe somente tristeza. Mas sabe aquela tristeza quando você sabe que seu relacionamento acabou, mas ainda está viva? Você sabe que não está morta. Você está inteira. Você é tudo o que existe. Você tem um encontro. Ele tem um novo amor. [Longa pausa sonhadora.] E você segue fundo nisso." [Musician – May 1996]

Então Eric Rosse envia uma mensagem e rapidamente Tori quer tirar satisfação e descobrir o porquê do contato. “Será que ele está pensando em mim? Será que ele me quer de volta?”. Não, ele queria apenas saber como ela estava, somente isso. Não tem como tirar sustento para sua alma de algo que já não existe mais:

Had me a trick and a kick and your message
You’ll never gain weight from a doughnut hole
Then thought that I could decipher your message
There’s no one here dear
No one at all

Ele já está seguindo em frente. Não está mais preso ao passado. Ele já tem outro satélite em sua órbita. E não existe coisa pior que saber que o amor da sua vida já virou a página, já tem um novo amor e não sofreu tanto quanto você:

You told me last night
You were a sun now
With your very own devoted satellite
Happy for you
And I am sure that I hate you

Inconformada, Tori quer tirar a prova dos nove. Quer ter certeza que ele não a quer mais. Não é possível que ele a tenha esquecido tão rápido depois de tantas promessas, tantas juras de amor, tantos planos, depois de quase oito anos... Certa vez, ele tinha prometido mostrar a ela seu jardim secreto, suas flores, sua primavera. Tori decide usar sua cartada final e tenta seduzi-lo novamente:

In the Springtime of his voodoo
He was going to show me spring

And right there for a minute
I knew you so well
And right there for a minute
I knew you so well

Got an angry snatch
Girls you know what I mean
When swivelin’ that hip doesn’t do the trick

(...) A chave para mim aqui é que ele iria me mostrar a primavera. Iria me mostrar... E muito da minha vida tem a ver com o "iria". [B-Side – May/June 1996]

A guerra chega ao fim com Putting The Damage On. Esta canção é o lado oposto da lua, é o lado oposto de Hey Jupiter. Em Hey Jupiter, vemos uma tristeza completamente diferente, Tori estava depressiva, amargurada e ainda tinha esperança de ter seu homem de volta. Em Putting The Damage On, Tori começa a olhar o homem que causou tanta dor em sua alma pelo o que de fato ele é. Depois de tudo, só lhe resta ser objetiva. Claro que a dor ainda existe, mas agora ele é só um fantasma em sua vida. Ele morreu e não fará mais parte da sua história dali em diante, e também é hora de Tori seguir em frente... Ainda machucada, cheia de cicatrizes, mas ciente que a felicidade não está na mão dos outros, está na busca da sua própria completude:

I’m trying not to move
It’s just your ghost
Passing through
I said
I’m trying not to move
It’s just your ghost passing through
It’s just your ghost
Passing through

“E é assim que finalmente entendi, 'Oh meu Deus, essa é a única maneira que poderei escrever isso, se começar a ver como ele é bonito. Depois de tudo o que aconteceu, ele é bonito. Ele ainda é bonito, mesmo depois, não importa o que ele fez.' Agora, isso pode dizer muito sobre mim, ou muito sobre ele." [WHFS Just Passin' Through - February 12, 1996]

Depois de perdoá-lo e conseguir encontrar certa tranqüilidade, Tori olha para dentro de si mesma, percebe que essa grande perda a tornou mais forte, mais dura na queda. E é olhando para o céu estrelado que a esperança retorna; que a centelha adormecida na sua alma reacende e ela começa a sentir o fogo sagrado da sua alma queimar novamente. A ferida começa a cicatrizar e ela se sente curada:

Sure that star can twinkle
And you’re watching it do
Boy so hard boy so hard
But I know a girl
Twice as hard
And I’m sure
Said I’m sure she’s watching it, too
Said no matter what tie she’s got in her right dresser
Tied
I know she’s watching that star


Gonna twinkle
Gonna twinkle
Gonna twinkle

"No entanto, o álbum não está terminado até Twinkle; ele não estava concluído até essa música. Aquele nível da chama, alimentar a chama, porque depois de todas as estrelas, há o fogo, tinha que ir até àquele lugar e transformar-me nele, em vez de tentar encontrá-lo novamente." [B-Side – May/June 1996]

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Apesar dos versos criptografados, podemos concluir que Boys For Pele tem uma narrativa cronológica, cíclica, fechada. Tori Amos conta como foi o seu processo de autoconhecimento em busca, principalmente, da sua masculinidade perdida e da cura da sua feminilidade ferida. O âmago do álbum consiste em narrar o caminho trilhado por Tori até conseguir o que almejava: encontrar o sagrado masculino dentro dela, projeção outrora lançada nos homens da sua vida, pois somente assim ela deixaria de colocar na mão dos outros sua própria felicidade, e despertar em si mesma a chama que faz seu lado feminino vibrar.
Esse é o enigma e o segredo do álbum: como podemos fazer o feminino e masculino dançarem uma bela valsa dentro de nós mesmos? Tori quer nos alertar que não devemos nos automutilar emocionalmente e/ou psicologicamente. Somos um todo, um ser completo e só seremos felizes ao lado de alguém, quando enxergarmos nossa própria completude.
Esta parece ser a verdadeira mensagem contida nas entrelinhas de Boys For Pele.




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