quinta-feira, 19 de junho de 2014

Desvendando "Boys for Pele" (Parte I)

Dia desses estava conversando com Ailton Palaria sobre discos de Tori, e ele me disse ter uma teoria acerca da narrativa que dirige o "Boys for Pele", considerado um dos álbuns mais "incompreensíveis" de Amos. Gostei tanto das ideias dele que começamos a desenvolvê-las um pouco mais, e pedi que escrevesse algo para ser publicado no ToriBr. Ele aceitou, e aqui está a primeira parte do texto, indo de Beauty Queen até Way Down; a segunda porção deverá ser publicada na semana que vem.
Esperamos que gostem do manuscrito e sintam ainda mais vontade de ouvir o disco, após a leitura. E eu só tenho a agradecer ao Ailton por dispor de seu tempo e coração para fazê-lo; muito obrigado! Agora, vamos desvendar o Pele...




DESVENDANDO “BOYS FOR PELE”
Parte I

Por Ailton Palaria

O terceiro álbum da cantora Tori Amos, Boys For Pele, lançado em 1996, ainda desperta muitas dúvidas, questionamentos, especulações e teorias sobre o seu real significado, se é que o álbum, de fato, tenha um real significado. É exatamente no campo do subjetivismo e do hermetismo que o álbum ergue seu palco e ali também nos apresenta toda a riqueza de sua Arte: fazer com que o ouvinte o ouça, tome posse dos seus sombrios terrenos e os transformem em seus próprios domínios.
Minha intenção com este texto, portanto, não é a de instituir um significado único para a obra, mas de apresentar minha interpretação acerca do álbum, baseado nas letras das canções e nas entrevistas que Tori concedeu durante sua divulgação.
Sabemos que o estopim do álbum é o fim do relacionamento de quase oito anos de Tori com Eric Rosse, “Meu relacionamento, que durou sete anos e meio, acabou. E foi isso que deu início a coisa toda.” Logo, o álbum narra a saga de uma mulher que se encontra em desespero com o término do relacionamento - que ela acreditava ser o amor de sua vida - e que em busca do perdão e da paz interior, precisa enfrentar o vale das sombras da sua alma e compreender a sombra do seu self.
Tori, além de querer proteger os personagens envolvidos nesta sombria história e mantê-los no anonimato, decidiu encontrar a cura através da metáfora.
Carl G. Jung afirmava que a metáfora é “o símbolo que cura”. Segundo ele, a metáfora atinge o self em três níveis: no nível mental, onde interpretamos o significado; no nível imaginário, onde reside o real poder da transformação e da mudança; e no nível emocional, unido aos sentimentos contidos na metáfora. A ação da metáfora nestes três níveis permite que o ser humano crie uma profunda ligação com sua psique.

"É um trabalho metafórico, por isso, se você usar a cabeça, vai estar em problemas. Você realmente tem que partir dos seus sentidos. É sobre o que as coisas representam mais do que a palavra significa. É associação. E se agir dessa maneira, então você estará respondendo a partir de seus instintos, e gostos, e cheiros, todo esse tipo de resposta, ao invés de analiticamente... É um álbum do coração. Se você usa seu cérebro, não vai entendê-lo. Não importa que você veja faces diferentes das que vejo. Não estou tentando lhe fazer ver sobre quem estou falando. Trata-se de uma emoção. Espero realmente que as pessoas sintam a emoção ou não terei feito meu trabalho direito." [Everybody's News (Cincinnati) - May 31, 1996]

Com isso em mente (ou na alma), podemos dar início à nossa breve viagem nos terrenos dúbios do álbum e tentar desvendar os segredos contidos na alma dessa mulher que teve o seu coração partido.
O álbum começa com Beauty Queen, onde Tori encontra-se num cenário um tanto suspeito. O que essa mulher desesperada faz numa lavanderia?

She’s a Beauty Queen
My sweet bean bag in the street
Take it
Down out to the laundry scene
Don’t know why she’s in my hand
Can’t figure what it is
But I lie, lie, lie again.

Fica óbvio, apesar de ela negar e mentir a si própria, que Tori foi comprar seu “pacote de feijões mágicos” numa lavanderia, de uma esquina de um subúrbio qualquer, pois ali foi lhe prometido o alívio instantâneo para a dor.
Tori, então, começa sua jornada e chama seus cavalos para ajudá-la:

I got me some Horses
To ride on
To ride on
They say that your demons
Can’t go there
So I got me some Horses
To ride on
To ride on
As long as your army
Keeps perfectly still.

Em inglês, horse é uma gíria utilizada para referir-se à droga heroína. Agora já sabemos o que ela comprou na tal lavanderia. Além disso, Tori utiliza um jogo de palavras bem inteligente. Ela alega que só é possível seguir em sua cavalgada, caso seu exército fique quieto. Em inglês, as palavras army e arm são praticamente homófonas, ou seja, só é possível que Tori prossiga em sua viagem, se ela ficar com o braço imóvel para poder injetar a droga.
Portanto, o início dessa jornada emocional acontece sob o efeito de drogas. Tori irá encarar, a partir de então, os demônios escondidos no seu inconsciente pessoal e coletivo.
O primeiro demônio que ela enfrenta é o estupro, cicatriz profunda na alma dessa mulher, que após ser abandonada certamente está se questionado, “O que há de errado comigo? Não sou mulher o bastante?”. E de forma mais generalizada, ela se questiona até que ponto as mulheres permitem serem vistas apenas como um objeto sexual, apenas como um pedaço de carne: "Blood Roses é sobre como, de fato, tomo ciência que estou optando que defequem sobre mim.”
Esse grande trauma é a senha de acesso para que Tori adentre no Inferno e tome um chá da tarde com Lucifer, que a recebe de braços abertos e permite que ela exponha todas as suas fraquezas, até mesmo as mais superficiais:

Everyday's my wedding day
Though baby's still in his comatose state
I'll die my own Easter eggs
(…)
Does Joe bring flowers to Marilyn's grave?
And girls that eat pizza and never gain weight
Never gain weight never gain weight.

Nestes versos Tori trata do típico sonho feminino de encontrar o homem da sua vida, o sonhado casamento e o possível filho, que não passa de míseros óvulos/ovos que ainda não puderam gerar vida nova. O sonho de ter um amor que sobreviva após sua morte. Será que ela encontrará alguém que leve flores ao seu túmulo todos os dias? E quem são essas meninas que não sofrem com sua aparência física e podem comer à vontade?
Após o bate papo com Satã, Tori se dá o direito de sentir inveja. Inveja da mulher (Courtney Love) que, mesmo sendo uma megera, uma bruxa má, Lady Macbeth em carne e osso, consegue despertar o amor verdadeiro em um homem (Kurt Cobain), capaz de fazer tudo por ela, até mesmo cometer suicídio.

"Essa é a minha canção base, minha Lady Macbeth. É o meu desejo de ser rei, de ter o que os meninos grandes têm, e abrir mão da minha feminilidade e vulnerabilidade para experimentar isso." [Diva – Feb/March 1996]

Don’t blow those brains yet / Não estoure seus miolos ainda
We gotta be big, boy / Nós temos que ser grandes, garotos
We gotta be big / Temos que ser grandes.

A partir daqui, o efeito das drogas começa a diminuir e num estalo, a mulher com cabelos ruivos e desgrenhados começa a perceber que a cura, que a guerra deve ser vencida de outra forma:

Give me peace, love and a hard cock! / Dê-me paz, amor e um pau bem duro!

Não é através da violência contra os homens que ela irá aprender a lidar melhor com eles. Não é causando mal a eles, ou os escravizando, ou os colocando sob seu feitiço maligno que ela será respeitada em sua completude. Está na hora de agir e não permitir que outro homem caia nas garras dessa megera maldita que decidiu disfarçar-se de crocodilo (Courtney Love) para poder abocanhar a zebra inocente (Billy Corgan/Trent Reznor) sedenta por um pouco de água:

"Refiro-me à 'Sra. Crocodilo' nessa canção. Às vezes, disfarço as pessoas sobre quem estou escrevendo com personagens inventados, pois assim eles nem sabem que estão nas músicas. E é assim que tem que ficar. Então, ao invés de chamá-los pelo nome real, porque eles têm certos traços [negativos]. Vou chamá-los de alguma outra coisa, como Sra. Crocodilo." [Women Who Rock - January 2004]

Que desilusão! Tori começa a se questionar se existe sinceridade, cumplicidade num relacionamento? Será que sempre existe algum interesse particular por trás do suposto Amor? Com essa desilusão em mente, Tori começa a sentir náuseas, o gosto de fel na boca e percebe que sempre tinha agido como uma criança inocente, mas a inocência morrera ali, naquele instante, assim como sua amiga Marianne:

Tuna
Rubber

A little blubber in my igloo
And I knew you pigtails and all
Girls when they fall
And they said Marianne killed herself
And I said not a chance
Not a chance…

"Marianne representa a morte da mocidade." [Baltimore Sun - January 21, 1996]

"Atum / Borracha / Um pouco de gordura no meu iglu... 'Para mim, dizer este verso de outra forma o tornaria realmente nojento e grosseiro. Às vezes, é apenas sobre como algo lhe faz sentir. Você tem que ir lá, tem que estar disposto a fazer esta viagem. E imagens, gostos, cheiros, objetos... São associações. Para mim, essas coisas são concretas. Algumas estão um pouco mais cobertas do que outras, não há dúvida sobre isso. Mas acho que do começo ao fim trata-se da jornada de uma mulher, e de fato trata-se de uma viagem emocional". [Keyboard - April 1996]

As coisas só parecem piorar, talvez um novo relacionamento possa ajudar. E numa tentativa frustrada, Tori busca em outro relacionamento - ainda com suas chagas emocionais sangrando - sua cura; mas o novo homem (Trent Reznor) não está disposto em ajudá-la. Essa guerra não é dele, ele não dá a mínima importância, ele não é homem o suficiente para carregar esse fardo com ela. E mais uma vez seu pequeno sonho de estabelecer-se emocionalmente é destruído e Tori, com o furor a todo vapor, constrói sua própria máquina de ódio*:

Caught a light sneeze
Dreamed a little dream
Made my own pretty hate machine
Boys on my left side
Boys on my right side
Boys in the middle
And you're not here
Boys in their dresses
And you're not here

"Então chegamos em Caught a Lite Sneeze e ela ainda é uma vampira, ela precisa do sangue daquele garoto. Você pode dizer que é linda, que é suficiente, mas quando você vai reivindicar isso? Você está na caça. Ele não dá a mínima pra você; ele pode até ter se preocupado com algumas partes suas, mas isso não é sobre você. Ele não quer resolver isso com você, sua carência o enoja, e você fica rondando: 'Oh não, não, não, eu tenho que tê-lo. Está lá fora, ele tem alguma coisa.' Qualquer coisa para manter isso." [B-Side – May/June 1996]

O fracasso e a tristeza são seu fado? Tori percebe como é difícil as mulheres receberem apoio e ajuda em seus momentos de fraqueza e vulnerabilidade. Elas sempre foram condenadas, apedrejadas, assassinadas e esquecidas. É hora de nos lembrarmos e louvarmos o lado feminino que também foi crucificado:

Muhammad my friend
It’s time to tell the world
We both know it was a girl back in Bethlehem

"E então, quando você tem certeza que tudo tinha a ver com os garotos, 'Nós dois sabemos que foi uma garota, lá em Belém... ' o que estou fazendo? Você começa a se lembrar do plano, começa a se lembrar que isto acontece não só porque os garotos riram de você quando você tinha 13 anos, este é um programa que começou muito tempo atrás." [B-Side – May/June 1996]

Não há mais jeito. Não há mais volta. Somente tentativas frustradas de eliminar a dor. Nem drogas, nem a raiva inconsciente, nem um novo relacionamento puderam ajudá-la. Chegou o momento de encarar o pior de todos os demônios: a Realidade. Não é momento de sentir dor. É a hora derradeira de ser a própria dor:

No one’s picking up the phone
Guess it’s me and me
And this little masochist
She’s ready to confess
All the things that I never thought
That she could feel.

"O álbum chega em Hey Jupiter... é o ponto onde ela se dá conta que está tudo acabado com essa relação em particular, ou relações, e que nunca mais vai ser o que era novamente. Nunca vai voltar. É aí que todo o álbum gira em seu eixo." [B-Side – May/June 1996]

O cortejo está pronto, o coral canta a canção para receber a alma daquela mulher que se encontra morta emocionalmente. Seja bem-vinda à Way Down, ou como preferimos chamar “O Fundo do Poço”.

The way down
The way down
He knows, let’s go
Way down
Way down
Way down
She knows


XXX


* “Pretty Hate Machine” é o título de um álbum do Nine Inch Nails, banda de Reznor. Mais uma razão para achar que ele tenha servido de "inspiração" para Caught a Lite Sneeze.

UPDATE (24/06): leia a Parte II aqui!

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